quarta-feira, 25 de março de 2015

Túlio, o negro. Racismo e um pouco de cotas

Dizer “eu sou negro” pode ser redundante para quem me conhece. Tipo, está óbvio – literalmente, na cara – que eu sou negro. Mas não, não é tão simples assim. Assumir sua ancestralidade (sem os mimimis “mas eu também sou descendente de espanhóis…”) é um ato de fala. Quando eu digo que sou negro, eu assumo uma história, uma realidade um contexto que, por mais que achem que estão longe de mim, estou familiarizado. Portanto, sim, eu sou negro, independente de movimento, partido, direita, esquerda, acima, abaixo, cristão, macumbeiro, etc. (sobre questões religiosas, abordarei em outra postagem).


Já ouvi pessoas falarem sobre batalhar. Posso dizer que vim de uma família de pessoas que correram atrás e tiveram, é claro, o quesito sorte, como em qualquer coisa na vida que dê certo. Meu pai é militar e professor. No tempo dele, os alunos do Colégio Militar que tinham notas razoáveis ingressavam diretamente na Academia Militar quando concluíam o segundo grau. Minha mãe é professora de artes, filha de médico. Estudou em uma tradicional escola de freiras em um bairro nobre do Rio de Janeiro, o mesmo onde morava. Mamãe sempre me disse que ela e as irmãs eram as “neguinhas metidas a bestas”, ainda que o pai delas fosse o médico mais respeitado da região. Meus pais também são negros. Claro, cada um lida com a questão de identidade de uma forma diferente, mas não cabe a mim falar sobre, pois não é sobre a vida deles. Afinal, eles são de outros tempos, os quais eu não vivi.


O fato é que, bem ou mal, tive uma boa criação, por mais que eu tenha estudado em escola pública em quase todo o período escolar (passei por duas escolas federais e três municipais). Tive oportunidade de fazer curso de inglês, de estudar em uma das melhores universidades privadas do Brasil, que, na maior parte da graduação, foi paga pelo meu pai e pela minha avó materna. Pude ir à academia, fazer aulas de dança e ainda consegui estudar francês (infelizmente não terminei, mas, juro, volto em breve!).


Não há nenhuma palavra que descreva a minha relação com o Jornalismo, que foi a minha primeira graduação. Qualquer uma que eu use será reducionista ou pessimista. Independente do quê tenha sido, o fato é que optei por começar uma segunda faculdade, desta vez, em uma universidade pública. Passei para duas instituições federais, e, em ambos os casos, em vagas de ampla concorrência. Ok, foi para o curso de Letras, já que o senso comum acha que é um curso fácil. Inclusive alguns jornalistas dizem isso – sabem de nada, inocentes! O fato é que me apaixonei por Letras, sobretudo, pela Linguística.


Já imagino o número de pessoas me elogiando por “ser um negro diferente”, “não precisar das cotas”, e por “correr atrás de verdade, em vez de ser vitimista”. Sim, corri atrás. Não, eu não sou vitimista. Sim, eu estudei. Não, eu não optei por concorrer às vagas de cotas.


Nada disso significa que eu seja contra as cotas. Eu, Túlio, não precisei delas. Eu tive todas a oportunidades possíveis na minha vida, o que me levou a concluir que não seria justo que eu me candidatasse àquelas vagas. Até porque seria, no mínimo, contraditório que um ex-aluno da PUC (que passou metade do curso sem qualquer bolsa) entre pelas cotas na universidade pública. Eu, por sorte (neste caso, sorte mesmo, já que só pude fazer isso por ter a “sorte” de ter nascido na família em que nasci – sem entrarmos em méritos religiosos, please), não passei por falta de oportunidades de educação nem passei por problemas financeiros. Não acharia justo entrar nas cotas.


Por quê? Porque elas existem e estão institucionalizadas. E há, sim, pessoas negras que precisam das cotas para ingressar na universidade. Mesmo que a reserva de vagas exista, nota-se que ainda há poucos negros nas universidades (passei por duas, sei bem disso). Há uma discrepância bizarra entre as quantidades de negros e de brancos no ensino superior. E, por favor, não vamos reproduzir o discurso de “vitimismo” ou de “o negro não quer trabalhar”. 


Aliás, quanto a “não querer trabalhar”, eu – frisando, negro – fiquei um ano e meio em busca de trabalho. Devo ter feito umas 15 entrevistas e em nenhuma fui aprovado. Modéstia a parte, eu falo bem e sei me apresentar. Para a maioria das vagas, eu era mais que qualificado. Passei muito tempo tentando descobrir um motivo para nunca ser chamado. Achava que era meu texto, ou que eu exalasse arrogância. Ou, ao contrário, insegurança. Mas não. Não fazia sentido. Bastava caminhar pelos corredores daquelas organizações. Não via negros ali. Aliás, eu via: como segurança, servente ou porteiro. Em um processo de trainee para uma multinacional, consegui ser selecionado para uma dinâmica de grupo. Em uma turma de cerca de 30 jovens, eu era o único preto. Isso é normal? Eu me recuso a acreditar que seja por “vagabundagem” ou por “vitimismo” que os pretos não consigam boas oportunidades.


Negar a existência de racismo é omissão. Eu mesmo fiz isso durante anos. Me orgulhava de não ter “nariz-de-batata”, da minha ancestralidade indígena, portuguesa e espanhola e de estar entre brancos. Eu nunca me senti inferior a ninguém por ser preto – o que, por si só, de certa forma, era um racismo. Me achava um negro acima dos outros negros. Até que decidi sair do meu mundinho e aprendi que não é bem assim que a banda toca.


Aliás, tenho visto muito isto, ultimamente. Negros que buscam enriquecer a qualquer custo como uma forma de compensação pelo que os pais lhe deixaram como legado: a pele preta. Acharia “de boas” se parasse por aí (não que concorde com isso, apenas avaliaria como mais uma vítima infeliz do racismo velado, caso digno de pena). Mas, não satisfeitos, negam toda a história ao acusar os próprios negros de “vagabundos”, “vitimistas”, “oportunistas”. Reproduzem o mesmo discurso que eu reproduzi por anos: “não sou como eles”. O problema é que, cedo ou tarde, precisaremos lidar com isso. A roupa de marca, o cabelo alisado, o carrão, a loirona ou o gringo rico (coisas que vejo alguns negros almejarem, como uma forma de “ascensão cromática”) não mudarão a nossa história. Não mudará quem nós somos.


Mas sinto informar que somos como eles SIM. E sim, nós sofremos racismo, ainda que de forma velada. Graças às oportunidades que nossos pais tiveram, e sorte, pudemos galgar rumos que a maioria dos demais negros não pode. Mas somos todos iguais – iguais aos negros pobres, aos negros ricos, aos brancos, aos amarelos, aos vermelhos, aos azuis, aos verdes, aos rosas, aos prateados…


As cotas, ao meu ver, não vieram para aumentar a segregação sócio-racial que existe no Brasil. Pelo contrário, são contra isso. Um negro que conseguiu uma vaga reservada não tirou a vaga de um “não-negro”, que, provavelmente, teve mais chances que ele. Eu, Túlio, negro, que tive oportunidades, estaria roubando a chance de um negro que não teve oportunidades, caso optasse pelas cotas. Por isso, não o fiz.


Acho importante frisar que não existe apenas cotas para negros. E que, apesar de concordar com a política de cotas, não concordo com a forma que ela é aplicada. Mas isto já é tema para outro post.


PS.: Racismo e injúria racial são crimes. Aceito opiniões divergentes, desde que não me ofendam. Caso contrário, é DRCI.

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